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Capítulo 3

A transformação da floresta

Pesquisadores no sambaqui Monte Castelo, no rio Guaporé, em Rondônia. Acervo Eduardo Neves

As primeiras pesquisas apoiadas pela FAPESP na Amazônia, no início dos anos 1960, tinham como objetivo identificar coletar espécies da biodiversidade de uma região até então pouco conhecida (ver capítulo 1).  O avanço na ocupação do território, o aumento da população, a institucionalização das áreas de proteção e a expansão da fronteira agrícola a partir dos anos 1970, mudaram o perfil da região e colocaram para a ciência novos temas de pesquisa, sobretudo na área da Saúde.

O número de casos novos de malária na Amazônia, por exemplo, triplicou entre 1970 e 1990, chegando à casa de 500 mil casos por ano. Desse total, 40% ocorreram em Rondônia. Em 2022, Rondônia já registrava pouco mais de 12 mil casos, graças a medidas de controle, à introdução de novos medicamentos, do avanço da ciência e, sobretudo, dos esforços de dois pesquisadores paulistas, Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Erney Camargo.

Pesquisas pioneiras

Luiz Hildebrando

Luiz Hildebrando (1928-2014) foi professor de parasitologia da Faculdade de Medicina da USP. Cassado pelo AI-5, em 1968, exilou-se na França, onde dirigiu as unidades de diferenciação celular e de parasitologia experimental do Instituto Pasteur. Aposentado, voltou ao Brasil em 1998, fixando-se em Rondônia, onde criou o Centro de Medicina Tropical e o Instituto de Pesquisa em Patologias Tropicais de Rondônia (Ipepatro). Apoiado pela FAPESP, ele estudou antígenos variantes de Plasmodium flaciparum e sua relação com formas graves de malária, de 1999 a 2001.

Erney Camargo

Erney Camargo (1935-2023), também parasitologista e também cassado pelo AI-5, liderou a instalação de um núcleo avançado de pesquisa do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP em Rondônia, em 1997, em Monte Negro, com apoio da FAPESP. Trabalhou com Luiz Hildebrando, ambos discípulos de Samuel Pessoa, professor de Parasitologia da Faculdade de Medicina da USP.

João Silveira

A expansão das fronteiras econômicas atraiu para a Amazônia população de diversas áreas do país. Só o "Projeto Garimpo", um programa do Ministério das Minas e Energia lançado em 1977, de incentivo à pequena atividade de lavra de gemas e metais preciosos, apinhou a região de Serra Pelada, no sudeste do Pará, com 30 mil garimpeiros. Bertha Becker (1930-2013), professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Rio Branco, que estudou a nova configuração econômica e populacional da Amazônia a partir dos anos 1970; alcunhou a região de “floresta urbanizada”, já que ali se refugiavam migrantes sem acesso à terra, atraídos pela ocupação da floresta.

Maria Santos

Quando o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) – que começou a operar em 1954 – ampliou seu escopo de pesquisa para além dos inventários de fauna e flora, teve como diretor Warwick Kerr (1922-2018), agrônomo e geneticista, reconhecido internacionalmente como uma das maiores autoridades mundiais em genética de abelhas. Primeiro diretor científico da FAPESP (1962-1964), Kerr ocupou a direção do Inpa por duas vezes, de 1975 a 1979 e de 1999 a 2002, período em que criou o programa de pós-graduação em Entomologia, Ecologia e Biologia de Água Doce, durante sua primeira gestão, e o de pós-graduação em Genética, Conservação e Biologia Evolutiva, na segunda gestão.

Antropologia: um novo olhar sobre a Amazônia

A ciência fez dissipar a ideia de que, no passado, a Amazônia tinha sido uma região quase despovoada, habitada apenas por grupos indígenas pequenos e dispersos. A pesquisa trouxe à luz outra Amazônia: com fartura de recursos materiais, povoamento denso, estradas e cidades. A presença humana na Amazônia remonta há mais de 8 mil anos. Em alguns lugares, há evidências de povoamento há 13 mil anos. E a população total da Amazônia, no início do século 15, antes da chegada dos europeus, é estimada em até 10 milhões de pessoas.

O passado da floresta e o impacto presente

Esse novo entendimento da região começou a ser revelado com pesquisas, como a do historiador José Proenza Brochado, que, em 1984, defendeu a tese de doutorado em antropologia An ecological model of the spread of pottery and agriculture into eastern South America, na Universidade de Illinois at Urbana-Champaign, influenciando a geração atual de arqueólogos. Outro marco, na década de 1980, foram os trabalhos da arqueóloga norte-americana Anna Curtenius Roosevelt, que encontrou em sítios arqueológicos do município de Monte Alegre (PA) pinturas rupestres de quase 13 mil anos, ajudando a mudar a compreensão de como se organizavam os assentamentos humanos pré-históricos na América do Sul.

Folha de rosto da tese An ecological model of the spread of pottery and agriculture into eastern South America, de José Proenza Brochado, defendida em 1984 na Universidade de Illinois at Urbana-Champaign, nos Estados Unidos

Essa nova visão da ocupação da Amazônia lançou luz no protagonismo dos povos da floresta e na sua capacidade de transformar as paisagens naturais. “Os povos da floresta, os povos indígenas, ao longo dos milênios, criaram a Amazônia que conhecemos hoje”, diz o arqueólogo Eduardo Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP).

A floresta também tem origem histórica

EDUARDO NEVES - ARQUEÓLOGO

"A ideia de que a Amazônia nunca teve muita gente e que é uma área marginal é equivocada."

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Desde os anos 1990, estudos têm reforçado a importância da atuação humana no ambiente amazônico, rejeitando o determinismo ambiental da visão europeia. Entre os achados, estão a domesticação, o cultivo e a mistura genética de plantas promovidos pela ação dos povos da floresta. Hoje, também são conhecidas as “terras pretas”, solos férteis que começaram a se formar há cerca de 5 mil anos, com o manejo de material orgânico em assentamentos indígenas.

A arqueologia tem atualmente na tecnologia uma aliada importante para a datação mais precisa, análises químicas e físicas mais sofisticadas e acesso ao DNA de materiais biológicos. A mais recente é a tecnologia LiDAR (Light Detection and Ranging), um sensor remoto que usa um laser como fonte de energia para medir a luz refletida de objetos distantes, permitindo obter informações em 3D sobre a floresta, como a topografia, a rede de drenagem, a estrutura da vegetação e os impactos ambientais. O LiDAR revelou, por exemplo, sítios arqueológicos escondidos sob o dossel da floresta.

No vídeo a seguir, Eduardo Neves traça um panorama das oportunidades da pesquisa arqueológica na Amazônia, destacando, entre outros pontos, a inclusão de pesquisadores indígenas no circuito de debates científicos.

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Uma revolução em várias frentes na arqueologia da Amazônia

EDUARDO NEVES - ARQUEÓLOGO

"Tem uma outra coisa que é muito brasileira, que é a presença na educação superior e na pós-graduação – e, daqui a pouco, também no ensino em sala de aula – de professoras e professores indígenas e quilombolas.”

Uma revolução em várias frentes na arqueologia da Amazônia

EDUARDO NEVES - ARQUEÓLOGO

"Tem uma outra coisa que é muito brasileira, que é a presença na educação superior e na pós-graduação – e, daqui a pouco, também no ensino em sala de aula – de professoras e professores indígenas e quilombolas.”

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Amazônia: arquivo geológico

Ao longo do século 20, as pesquisas na área de geologia na Amazônia voltavam-se principalmente à exploração econômica da região, com perfurações de solo em busca de jazidas de gás e petróleo. As investigações também se ocupavam de outras reservas minerais e do potencial hidrelétrico dos rios. Mais recentemente, a ciência passou a investigar a própria formação de solos, rochas e rios da Amazônia, e sua interação com o meio aéreo e os seres vivos, sob o ponto de vista ecológico.

Trabalho em diferentes paisagens

Uma dessas pesquisas é conduzida por André Sawakuchi, professor do Instituto de Geociências da USP. Sawakuchi trabalha no Projeto de Perfuração Transamazônica (TADP, sigla para Trans-Amazon Drilling Project), um projeto temático da FAPESP cujo objetivo é compreender como a formação geológica da Amazônia contribuiu para que ela se tornasse o local com a maior biodiversidade do mundo, como ele explica no vídeo a seguir.

Geologia na
Amazônia:
pesquisa básica

ANDRÉ SAWAKUCHI - GEÓLOGO

"Por que tem rios em que as águas são claras e rios em que as águas são pretas? Há rios em que as águas são brancas. Por que tem floresta na Amazônia que cresce em solo arenoso? E é diferente das que crescem em outros tipos de solo."

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O método de pesquisa passa por perfurações no solo para extrair testemunhos de sedimentos e rochas sedimentares. A partir deles, é possível colher dados como a presença de materiais carregados por rios de locais distantes, fósseis e resquícios de animais ou polen. Tudo isso pode indicar transformações na topografia, na biodiversidade e no clima da região, como Sawakuchi detalha no vídeo a seguir.

Essas evidências sobre a história da formação da Amazônia só podem ser acessadas em perfurações muito profundas, em operações grandiosas no Acre e em Rondônia, envolvendo o apoio do International Continental Scientific Drilling Program (ICDP) e do Smithsonian Tropical Research Institute (STRI). Ao longo de meses, a perfuração no Acre chegou à profundidade de 920 metros, o que significa alcançar informações que datam de 25 milhões de anos.

Memórias de campo por André Sawakuchi

André Sawakuchi mostra imagens de seu acervo de pesquisa e comenta trabalhos do Projeto de Perfuração Transamazônica.

O subsolo da Amazônia se constitui numa espécie de arquivo das origens e transformações da região, ajudando a responder a muitas questões ainda obscuras, como o que esperar em termos de resposta da floresta às mudanças climáticas atuais. Partindo da sequência de quantidade e diversidade de polens em diferentes camadas do subsolo, é possível verificar como a vegetação e as espécies resistiram às mudanças climáticas do passado. “A pesquisa geológica olha também para esse tempo mais profundo. Como o clima mudou? Como a biodiversidade foi influenciada por isso e como influenciou? biodiversidade também influencia o clima, também molda os ambientes”, afirma Sawakuchi.

No vídeo, o pesquisador conta sobre os próximos passos para os testemunhos obtidos nas perfurações.

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Testemunhos obtidos podem continuar a ser estudados

ANDRÉ SAWAKUCHI - GEÓLOGO

"Nos primeiros dois anos depois da perfuração, quem tem acesso a esse material são os pesquisadores envolvidos no projeto. Mas depois, esse material fica disponível para outros pesquisadores – por isso ele tem que ser guardado para sempre."

Testemunhos obtidos podem continuar a ser estudados

ANDRÉ SAWAKUCHI - GEÓLOGO

"Nos primeiros dois anos depois da perfuração, quem tem acesso a esse material são os pesquisadores envolvidos no projeto. Mas depois, esse material fica disponível para outros pesquisadores – por isso ele tem que ser guardado para sempre."

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Processo de abertura das amostras

Amazônia+10

A FAPESP liderou a implementação da iniciativa Amazônia+10, encampada pelo Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap) e apoiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNpq), com o objetivo de apoiar a pesquisa científica e o desenvolvimento tecnológico na região, assim como as interações natureza-sociedade, em um ambiente sustentável e inclusivo, como Carlos Américo Pacheco, diretor-presidente da FAPESP, explica no vídeo abaixo.

Uma forma inovadora de financiamento

CARLOS AMÉRICO PACHECO - DIRETOR-PRESIDENTE DA FAPESP

"O Amazônia+10 tem um drive também de olhar para baixo do dossel, ou seja, de olhar para as populações que vivem na região. No sentido que tem tido várias iniciativas de criar oportunidades de emprego e renda compatíveis com a floresta em pé."

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Além da FAPESP, 26 Fundações já aderiram à iniciativa. A intenção é promover ações convergentes de CT&I que fortaleçam diretrizes, eixos e propostas do Planejamento Estratégico de Desenvolvimento Sustentável da Amazônia, visando superar obstáculos para o reflorestamento de áreas degradadas, o desenvolvimento de atividades agrícolas de baixa emissão de gases de efeito estufa, a agregação de valor nas cadeias produtivas da bioeconomia, a geração de alimentos, a produção de fármacos, a geração de energia limpa e a garantia de acesso a serviços básicos para as populações que habitam a região.

Inclusão socioeconômica dos povos da floresta

Inclusão socioeconômica dos povos da floresta, que está na agenda de todos os programas apoiados pela FAPESP na região Amazônica, tem ganhado força nos últimos anos, tanto nos debates do campo político como na pesquisa.

Trazer o ponto de vista dos amazônidas na formulação e execução dos estudos, e dar o protagonismo e fomento a instituições de pesquisa locais são parte de boas práticas para evitar o chamado colonialismo científico. O sentido é deslocar as populações locais da condição de objeto de pesquisa ou de “coletores de dados” para a de autores e coautores de projetos científicos.

Conhecer a trajetória da população da Amazônia tem grande importância por muitos motivos, que vão desde corroborar o seu direito a territórios até uma discussão mais ampla sobre o que pode ser considerado sofisticado na relação entre sociedades e o meio ambiente.

Complementaridade entre saberes

A visão da ciência sobre a realidade da Amazônia não pode prescindir do ponto de vista da população que nela vive, o que traz novos e importantes desafios para o campo da pesquisa. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha fala sobre esse tema no vídeo a seguir.

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Intercâmbio entre saberes

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA - ANTROPÓLOGA

"A gente não pode perder esse conhecimento extraordinário, mas para isso a gente tem que reciprocar também. Tem que ter primeiro uma grande confiança mútua, que só se cria com condições especiais e, repito, com condições legais também."

Intercâmbio entre saberes

MANUELA CARNEIRO DA CUNHA - ANTROPÓLOGA

"A gente não pode perder esse conhecimento extraordinário, mas para isso a gente tem que reciprocar também. Tem que ter primeiro uma grande confiança mútua, que só se cria com condições especiais e, repito, com condições legais também."

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Luiz Hildebrando

O antropólogo Rivelino Barreto, da etnia tukano, considera que a presença indígena nas universidades, embora fundamental, ainda é um projeto em ascensão.

“A academia precisa ter atenção para não querer nivelar todos, porque é fundamental compreender as diferenças intelectuais manifestadas pelos povos indígenas. Essa intelectualidade indígena se manifesta de várias formas”, diz Barreto. “O que temos hoje é justamente que pensar melhor a ciência na Amazônia, pensar teorias e conceitos a partir dos amazônidas. Esse contexto para nós [indígenas] é sempre um desafio, na medida em que estamos lidando também com as epistemologias não indígenas, esse diálogo com as epistemologias de fundamento europeu”, afirma.

COP-30: Uma oportunidade estratégica para o Brasil

A 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30),em novembro de 2025, em Belém, no Pará, pode passar do plano das negociações formais para ações efetivas, com protagonismo dos países em desenvolvimento, na expectativa de Thelma Krug, coordenadora do Conselho Científico do evento.

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O futuro da
floresta

THELMA KRUG - LÍDER DO CONSELHO CIENTÍFICO DA COP30

"A gente não pode perder esse conhecimento extraordinário, mas para isso a gente tem que reciprocar também. Tem que ter primeiro uma grande confiança mútua, que só se cria com condições especiais e, repito, com condições legais também."

Carlos Nobre destaca as medidas mais importantes aprovadas nas Conferências das Partes (COPs), órgão responsável por tomar as decisões necessárias para implementar os compromissos assumidos pelos países no combate à mudança do clima, criada pela Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima que reúne 198 países.

Expectativas
com a COP30

CARLOS NOBRE - CATEDRÁTICO DO IEA-USP E CO-PRESIDENTE DO PAINEL CIENTÍFICO PARA A AMAZÔNIA

“Esta terá que ser a mais importante das 30 COPs”

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Programas FAPESP de destaque na pesquisa sobre a Amazônia

Programa FAPESP de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso Sustentável da Biodiversidade (BIOTA-FAPESP)

O BIOTA-FAPESP, lançado em 1999, era inicialmente voltado para os biomas do Estado de São Paulo. Com o crescimento do programa, estudos dedicados a outras áreas passaram a ser incorporados, incluindo projetos dedicados à biodiversidade na Amazônia – dado o potencial de pesquisas na região. Com um DNA de apoio à estruturação de políticas públicas, o programa tem tido cada vez mais pesquisas que consideram também a realidade social e o desenvolvimento sustentável da região.

Programa FAPESP de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas Globais (PFPMCG)

Lançado em 2008, o PFPMCG apoia projetos de pesquisa sobre temas multidisciplinares, desenvolvidos por grandes equipes por um período de até seis anos, que buscam entender os processos que controlam aspectos críticos para a sustentação do clima e a maneira como se dá essa mudança para desenvolver estratégias de mitigação e adaptação em bases científicas.

Programa FAPESP de Pesquisa em Bioenergia (BIOEN)

Lançado em 2008, o BIOEN tem como objetivo estimular e articular atividades de pesquisa e desenvolvimento utilizando laboratórios acadêmicos e industriais para promover o avanço do conhecimento e sua aplicação em áreas relacionadas à produção de bioenergia no Brasil.

Linha do Tempo

Ocupação da Amazônia